abril 10, 2008
por cojiradf
(texto publicado no site diretodaredacao.com, em diálogo com o artigo de Eliakim Araújo)
O fator novo na eleição presidencial americana é, sem dúvida, o senador negro Barack Obama. O representante do Illinois faz parte da geração pós-Luther King – o grande ativista, pastor batista e prêmio Nobel da paz que – valendo-se da política da não-violência – liderou um movimento social que logrou vencer uma política segregacionista que atrasava em dois séculos o sonho da América progressista, sonhado pelos pais fundadores da pátria. Com a luta altiva dos negros no sul dos Estados Unidos veio a conquista dos direitos civis, a política de ações afirmativas e, em grande medida, mas não completa, uma progressão social dos afro-americanos. Para isso, a sociedade e o sistema americanos tiveram que se curvar e estender os princípios de sua democracia à comunidade descendente dos escravos que ajudaram a construir a riqueza daquela nação.
Pode-se afirmar que a sociedade americana ainda não resolveu por completo uma persistência crônica do preconceito racial, as investidas de um racismo tentacular e até mesmo uma separação na prática de brancos e negros. Mas o fato é que o sistema americano ousou reconhecer a dívida do país e da sociedade como um todo para com a comunidade afro-americana. Houve dois princípios nesse reconhecimento: a reparação e a compensação. A reparação pressupõe o reconhecimento da dívida, do erro, do pecado da legitimação do mal, no caso, a escravidão e suas conseqüências. A compensação requer políticas de Estado para promover a comunidade, eliminando os entraves existentes a seu desenvolvimento e promovendo de forma determinada a ascensão de pessoas dessa etnia. Isso não como concessões de governo, mas como políticas públicas com impacto sobre o setor privado.
No Brasil – país que compartilha com os EUA o mesmo passado escravista – ainda hoje é forte a falsa noção de que o conceito de racismo não se aplica bem ao contexto nacional. Há alguns anos, a Universidade de São Paulo realizou uma pesquisa sobre o racismo no país. Os números são contundentes e encerram um paradoxo: 97% dos entrevistados afirmaram que não tinham preconceito. A contradição vem em seguida quando 98% disseram conhecer pessoas que manifestavam algum tipo de discriminação racial. Pode-se concluir que é difícil alguém se assumir racista, mas é fácil reconhecer que o outro o é.
Nos últimos anos, por pressão do movimento negro, por força de estudos acadêmicos e pela imposição de acordos que o Brasil tem assinado como integrante de organismos multilaterais, a esfera pública tem enfocado a persistência das desigualdades entre brancos e negros (aqui incluídos os mestiços). Instituições como universidades, o IBGE, o Dieese e outras passaram a trabalhar com esse recorte e a mostrar aquilo que o brasileiro ainda tem dificuldade de admitir. Há sim um racismo estrutural na sociedade brasileira. Ele se expressa desde as pequenas situações do cotidiano até a baixa presença dos negros nas universidades, nos altos cargos das empresas, no oficialato das Forças Armadas, no corpo diplomático, nas três esferas e nos três âmbitos do Poder, nas nossas propagandas, filmes e novelas.
É patético, mas foi por seguir a onda mundial do politicamente correto que nosso mercado publicitário passou a incluir com regularidade a presença de negros nos anúncios e propagandas. A coisa é tão forçada que se chega a reproduzir o mesmo percentual de negros na população de países como os EUA, não mais que 12 ou 13%, quando no Brasil somos, segundo o IBGE, a metade da população. Ou seja, o negro é incluído de modo assaz minoritário e coadjuvante, como que para se evitar a pecha de racista, lá fora, já que aqui a cobrança não é levada muito a sério.
É lamentável constatar que no tocante às finanças públicas, o Brasil vem fazendo seu dever de casa. No entanto, tendo em vista a busca de solução para as desigualdades de ordem racial, o país é reprovado ano após ano. Chega de silêncio, de omissão, de ufanismo fajuto em torno da democracia racial – você ainda acredita nisso? – e de acusações indevidas de racismo reverso. O Brasil precisa reconhecer sua dívida histórica para com os negros e passar a pagá-la. A propósito, a adoção das cotas para negros no ensino superior é um exemplo de política compensatória já em pleno vigor em muitas universidades públicas, mas não se pode parar aí. O fosso é grave demais e exige medidas urgentes. É preciso avançar. Cento e vinte anos de espera é tempo longo demais.
A COR DO BRASILEIRO
Sobre quão negro deve ser um negro para ser considerado racialmente assim… Enquanto nos Estados Unidos ainda se pode, com certa dignidade, chamar um negro de “negro”, no Brasil prefere-se simplesmente chamá-lo de “moreno” e, ainda assim, com a devida cautela…
O certo é que se se chama um negro de “negro”, o próprio negro refuta-se pejorado, excluído, discriminado. O negro no Brasil tornou-se “moreno”, talvez para amenizar as mazelas de um passado eivado de escravização, torturas e reais discriminações, ou talvez para evitar qualquer desconforto que remonte a uma sutil forma de exclusão social.
Os próprios brancos, por vezes, não sabem como se dirigir aos negros nas situações em que se torna imperioso falar o nome “negro” e, porventura, se alguém lhes pede que caracterizem a raça de certa pessoa (negra), com certeza temem ao dizer, por exemplo, “ela é negra”. O “negra” ainda soa desconfortável tanto para o emissor como para o receptor da informação.
A comunicação se faz, por indispensável, de emissor e receptor. A mensagem pode ter o sentido completamente alterado dependendo da maneira como for “filtrada” pelo destinatário. Este, ao interpretá-la, pode recebê-la com ironia (ainda que ela tenha sido emanada de forma sincera), com indiferença (mesmo que realmente tenha um direcionamento específico), com amargura (ainda que emitida de maneira ingênua). Da mesma forma, se de bom espírito o receptor, ainda que a palavra tenha sido falada com cinismo, ele pode, bondosamente, aceitá-la com a (sua) sinceridade, transformando-a numa “mensagem de paz”. Bons ouvidos fazem pacíficas as relações interpessoais. Bons “brancos” fazem dignos quaisquer negros. E bons negros fazem qualquer coisa que qualquer outra raça também faça.
Povo brasileiro: seríamos todos “morenos”? Por que? Medo de evitar desentendimentos entre negros e supostamente brancos? Negros que insistem em não serem chamados assim, por falta de amadurecimento? – Porque realmente os cruzamentos raciais revelam que muito dificilmente encontraremos a “raça pura” perdurada depois de tantos anos de história no Brasil. A antiga segregação, agora no Estado Democrático de Direito, não mais existe porque se chama igualdade e, desde então, tornamo-nos livres para perpetuarmos raças as mais variadas possíveis.
Daí tornamo-nos, também, uma mistura de tudo: desde o “moreno”, que agrada aos olhos e aos ouvidos, ao “branco” que, mesmo não o sendo, ainda persiste em querer “elevar-se” nessa condição.
Brasil de todas as cores, um dia seremos um só abraço. Tal como o leite derramado que se juntou ao sangue do padeiro, em Drummond, formando um único tom (aurora) – assim estamos caminhando nós, na união de etnias e na aceitação de que somos uma mistura que, no final, revelará o caleidoscópio de cores a nos ensinar a real felicidade.
André Ricardo é jornalista, mestre em Comunicação, doutor em Lingüística, repórter da TV Senado e integrante da Cojira-DF. Email: andre33@uol.com.br
Ricardo Medauar Ommati é Assessor Jurídico do TRE, de Minas Gerais. Email: ricardoommati@gmail.com